Todas as manhãs ouço um assobio. Sei que é um homem que assobia. Nunca o vi. Gosto daquele som, para além do hábito tornou-se uma necessidade, um quase relógio que medeia o último golo no copo de leite e o bater da porta. Não imagino as minhas manhãs sem o assobio do homem que nunca vi. Não imagino conhecer o homem do assobio e no entanto, desejo-o. Se algum dia vier a encontrar o dono do assobio já não me fará falta o assobio. Nem o leite, nem ter casa com porta para fechar, nem manhãs ou outro tempo do dia. Tudo, irremediavelmente preso ao desejo tem o contraste do ouro dos tolos, deixa-se de querer, deixa-se de sonhar com o filão.
Confissões àparte [não é para isso que estou aqui] declaro a minha não inocência nestes assuntos: apeteceu-me escrever, deu-me para isto, talvez me saia melhor do que a rabiscar outros assuntos, por ex.: esboços de mãos a escreverem ou paisagens bucólicas que se delimitam nas arestas das folhas [ arestas em folhas?] de um bloco A4, coisa curta para a minha vista. Apeteceu-me ver se ainda era capaz de escrever coisa com sentido, consentido, as palavras têm este apelativo de podermos brincar com elas sem ninguém nos levar a sério ou levando a sério mesmo, porque são assunto sério. Já os desenhos... Toda a gente espera que o desenhador se saia bem, que o risco queira dizer exactamente aquilo que risca, não há como emendar, se se usa a borracha entendemo-lo como curioso, se segue avante, chamamo-lo de medíocre, um trambolho armado em artista. As letras não, ou se sabem ou não se sabe fazer uso delas. Digo eu, que me preciso de convencer que tem de haver uma justificação séria para ter cuidado com o cão.
As lágrimas são um exercício poético. Não há dor que não se supere [a morte cura-a] nem invenção da dor que não se fabrique [actores há-os melhores entre amadores].
Choro por tristeza mas também quando a sensação feliz me inunda. Choro porque lembro e porque não consigo recordar mais com precisão o cheiro, o som da voz. Choro porque me cortei e porque fui mãe. Choro de tanto rir e choro porque o mar é salgado. Choro outros e por outros e em comunhão a outros. Choro, porque temo o dia em que nada me faça chorar, em que nada e nem mesmo um poema me aflore os olhos e me revele a fragilidade de uma lágrima perdida, sem razão, sem explicações neurológicas para um descontrole ocasional.
Por cada habitante devemos contar dois. Eu serei uma mais outra e o meu vizinho da frente, ele mesmo mais um. E assim por diante. Portanto, para além de mim [e conte-se mais uma] no andar onde vivo, seremos ao todo quatro, somando ao meu vizinho um outro, perfazendo dois.
São contas fáceis de fazer.
São contas dificeis de calcular se pensarmos que por cada um dos que conhecemos, outros tantos haverão que são iguais ao mesmo mas tão diferentes na surpresa. Porque é na surpresa de conhecermos que desconhecemos quem connosco vive, ri, chora, nos desaponta.
Há pessoas que não se cruzam comigo, atravessam-me, não lhes gosto. Não me fazem sangue, não me doem, lembro-as quando a aproximação se encarrega de tal. Por vezes convivo com elas, partilhamos do mesmo espaço temporal, até trocamos palavras. Não há em mim como não há [creio] nelas, recipiente que apare esses sons e cortesias de boa vivência, cai tudo ao chão, embaraçam-se palavras entre sapatos como lixo que se dispensa colado e inoportuno.
Durante muito tempo apanhei essas frases do chão, guardei-as, sempre alguma escapando-me entre dedos ou sujando-me, eu a agarrá-las e a vociferar contra hipocrisias que me colavam ao peito quando chegavam. Perdi esse hábito, talvez tenha aprendido às minhas custas que não vale a pena ter olhos se não queremos ver. Não me queríam ver, não me querem ver, continuam a trespassar-me mas eu deixei de me vergar para lhes apanhar as palavras disperdiçadas. Tão pouco valor. Tão pouco eles, tão pouco eu para eles.
Tenho uma cidade dentro de mim. Sons, cheiros, formas, relevos. Acidentes geográficos de tudo o que já vivi e me marcou, ainda que não recorde. Mas está cá, cada subida íngreme ou falta de degrau fazem o meu interior, memorável ou não [quero esquecer], passos tantos que dei, outros oferecidos na palma de uma mão-guia que entretanto cegou e outras vieram e mais se perderam.
Escrevo à velocidade do pensar e calcorreio ruas estreitas na medida que as linhas se fazem ruas. Não deixo ninguém atravessá-las porque são minhas, a única coisa de minha propriedade que alguém jamais chamará sua e por mais força que exercitem nunca conseguirão apanhar-me.
A minha cidade sou eu, não é nenhum mundo nem universo grandioso. Por vezes é apenas um lugarejo, ermo, saloio, sem atractivos. Não me importa. É uma cidade bonita e ensolarada se estou feliz. Mas também é bom quando chove, faz-me desejar o sol de novo. E acordar todos os dias e lembrar todos os dias que há gente que não tem lugar.